Da gaiola para o mundo e sem amarras
"O Eco dos Pássaros" soa porta fora
É hora. Volvida a sensação de invulgaridade e as amarras com que a Peste nos atracou, sai agora à rua o livro físico d' O Eco dos Pássaros - projeto conjunto que, ao dialogar autores, tornou esse tempo num lugar um pouco mais suportável, habitável.
O evento da apresentação da obra dá-se a 26 de janeiro, pelas 18h30, com transmissão online, aberta ao público.
Tal como se lê na contracapa, em O Eco dos Pássaros reverberam mais de 30 vozes autorais, provenientes de diferentes territórios do país, cujos textos, disformes na forma, no motivo e nos géneros, se unem aqui na catarse e na fuga pela palavra.
Alguns dos textos foram partilhados através de seis encontros digitais, os quais tomaram o nome “Zines”, bem como do evento digital “O Eco dos Pássaros Fora da Gaiola". Da abertura destes encontros resultou a troca de experiências entre autores, e entre eles e o público que se juntou.
Tiago Marcos, Sara Martins, Diogo Simão, Carlos Norton, Cláudia Tomé Silva e Sandra Ramos são seis das vozes que compõem a polifonia deste Eco, e que abaixo se reproduzem.
Além destes, foram autores Ana Isabel Fernandes, Ana Rita Rodrigues, André Horta, Andrei Serotini, António Carlos Simão, Bruno Fidalgo de Sousa, Catarina Calvinho Gil, Eleutéria Pires, Francisco Carmo, Francisco Orelha, Hélder Raimundo, Hugo Campos, Hugo Neves, Inês Palminha, João Meirinhos, João Tiago Neto, Luís Caracinha, Luís Ene, NunoGomes, Luz Alba, Miguel Curado, Ruben Gonçalves, Shaka Treze e Sílvia Leite.
Tiago Marcos: "Enquanto conseguires imaginar e criar, estás a adicionar outras camadas à realidade."
Autor e responsável pelas notas introdutórias, Tiago Marcos fala-nos do prazer de “conhecer novos autores e reencontrar alguns que já conhecia e com os quais voltei a colaborar”. Quanto aos encontros online, “foram muito importantes, especialmente tendo em conta o contexto. Não sei se reparaste, mas fazia sempre as sessões com um copo de vinho na mão, e era essa a minha saída à noite! Regressei um pouco atrás, ao tempo das tertúlias. Voltei a Faro na altura em que chegou a pandemia, e vim um pouco à procura disso: do lado mais comunitário ligado à palavra e à poesia.”
Da autoria de Tiago, fazem parte do Eco dos Pássaros os poemas Existe em nós uma tristeza latente, Não é nada que o tempo possa empurrar, Atirem-me com ferros feitos faca e Desculpa Florbela, sendo o último "uma reintrepetação e uma desconstrução de Ser Poeta, poema de Florbela Espanca."
Neste poema, há uma alusão às “coisas banais”:
“É caber no pequeno das coisas inúteis e banais/ E expandir-se daí em universos inteiros."
Convido Tiago a pensar sobre a importância que têm essas coisas para si, e recordo que, certo dia, foi Tiago quem me disse algo como: "as ideias, os poemas, já estão prontos; nós é que os apanhamos.” Dialogando as ideias, Tiago reflete: "da mesma forma que, por vezes, temos a sensação de que o primeiro verso do poema ou a ideia principal nos aparece já pronta na cabeça, há um dia em que olhas para as coisas simples, ou completamente banais, com outro olhar. Não é a coisa que muda, é só o olhar, e a partir daí consegues expandi-la, neste caso ao escrever sobre ela."
Em Atirem-me com Ferros Feitos Faca, diz-se que "o mundo não acaba no que vejo". Quando pergunto a Tiago onde é que ele acaba, ou, aliás, ele acaba?, responde-me que "não! Enquanto conseguires imaginar e criar, estás a adicionar outras camadas à realidade."
Ouvi algures que morremos duas vezes; uma na terra, e uma última quando a última pessoa fala em nós. Servindo-se de um olhar intertextual, Tiago recorda: "aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando", verso de Camões (Os Lusíadas, Canto I, 2ª estância)." Essa noção de imortalidade prende-se muito com isso, com os feitos que ficam cá e, ao perdurarem, libertam-te dessa lei da morte. Também Heróstrato, de Fernando Pessoa, fala sobre isto, da Arte e da procura da imortalidade através dela: Heróstrato pegou fogo ao do templo de Ártemis em Éfeso, na atual Turquia, para que fosse recordado, na posteridade."
Coube ainda a Tiago a curadoria dos textos enviados pelos autores, tarefa que consistiu em "separá-los e geri-los pelas várias zines, de forma a garantir que nenhum autor ficava de fora; que todos ficassem representados, ainda que, para a edição impressa, alguns textos tenham sido suspensos."
Tiago Marcos é também autor d’ A Fonte das Palavras, colectânea poética editada pela Epopeia Books, em janeiro de 2017.
Sara Martins: "O Eco trouxe-nos a possibilidade de tirar o pó aos nossos olhos, a nós mesmos e à nossa memória."
Ao Eco, Sara traz-nos Era noite, é sempre noite e já não sei ser outra coisa; O bicho contorcia-se com saudade; Por baixo da pele arde uma sede que eu não deixo de sonhar; Não bastam os cantos e A rua cabe dentro de meio copo de água. Com mote nestes dois últimos poemas, Sara deixa-nos com este pensamento:"vivi toda a quarentena sozinha. Completamente isolada dos outros. Para alguém que tinha o silêncio e o estar só como necessários, estes começaram a ser sufocantes, a engolir-me. Era como se vivesse constantemente à procura de companhia, e a única que encontrava era, precisamente, o meu eco nas paredes daquela casa.
Esse eco trouxe-me, como acredito que trouxe a muitas outras pessoas, uma maior consciência de nós mesmos, ao ponto de começarmos a ficar fartos dos nossos ecos. Na altura, ofereceram-me uma rosa... nunca liguei muito a flores e muito menos a rosas, mas aquela rosa... foi a minha companhia. Tratei dela para que durasse o mais possível dentro daquele copo de água, porque, a cada vez que olhava para ela, fazia-me sorrir, por ser a única coisa com vida, além de mim, dentro das quatro paredes. E porque me fazia lembrar a Ana e a importância da amizade. Hoje, lembro-me como nunca desta história bonita que me trouxe a pandemia, porque a escrevi para o Eco. Porque a pandemia trouxe-nos os panos a tapar os rostos, mas o Eco trouxe-nos a possibilidade de tirar o pó aos nossos olhos, a nós mesmos e à nossa memória."
Sara Martins é autora da obra No Avesso das Horas, colectânea poética editada pela Epopeia Books em 2019. Foi ainda responsável pelo Design Editorial de Eco dos Pássaros, juntamente com Luís Caracinha.
Diogo Simão: "Quando escrevo, sinto muitas vezes que há uma energia qualquer, vinda de um sítio que eu não sei qual, a chegar até mim de uma forma que não sei explicar, mas que faz o trabalho por mim"
N' O Eco dos Pássaros, encontramos Diogo Simão em Vou precisar de mais tabaco. Apesar do misto de motes que inspiram a história, Diogo fala-nos da série The Wire, e de como algo tão aparentemente inócuo como um maço de tabaco de marca que nos é pouco comum (Newport), pode remeter a algo imenso. "Em The Wire, série que fala sobre um conjunto de detetives e agentes que investigam o narcotráfico em Baltimore, um dos meus personagens preferidos é o Omar. No meio de todos os gangsters que vendem droga e a traficam, dos pequenos que vão surgindo no seio das guerras entre polícias e traficantes porque não têm mais maneira de subsistir, existe o Omar, um habitante do bairro, que rouba mas não trafica, e que não faz mal a ninguém que seja inocente.
Tem um código segundo o qual tem de haver justiça no meio destas guerras. Se percebe que alguém está a fazer algo que seja mais desonroso, o Omar mata esse alguém. É uma espécie de Batman no meio destas pseudo-guerras entre traficantes, políticos e agentes. Esta foi uma pequena homenagem, porque a imagem de marca do Omar são os cigarros Newport."
O "Gajo do Fogo", protagonista desta história, já existia: "foi co-protagonista de uma curta-metragem que realizei na Figueira da Foz, e quis expandir essa curta para esta história inspirada no The Wire, e também em acontecimentos que se estavam a dar em 2020."
Lendo a história, apercebemo-nos de uma dualidade ou contraponto entre “por uma vez moldamos em vez de destruirmos”, expressão proferida pelo "Gajo do Fogo". Será que aquilo que alguém alega ser destruição pode simultaneamente , aos olhos de outro, ser algo que nasce, algo frutuito?
Diogo discorre:
"Para muitas pessoas, o tom da fantasia pode aproximar uma história de uma de super-heróis. No entanto, sempre fui consciente da maneira como utilizo estes vértices da ficção para contar histórias humanas. E isso é algo de que me orgulho desde a primeira curta que realizei: a (Des)ligado, em 2015. Fui sempre consciente de estar a usar algo de que gosto, a fantasia, e por vezes um pouco da magia, não necessariamente pelo fantástico em si, mas para potencializar e maximizar atitudes, comportamentos, ideias humanas que não poderiam ser naturalmente expressas.
No caso do "Gajo do Fogo", em vez de ter colocado a disparar fogo das mãos, poderia ter colocado um lança-chamas às costas, mas iria perder o efeito que eu queria: tu podes tirar esse lança-chamas, ao passo que o fogo das mãos é algo que não consegues; algo com que ele vai ter de viver para sempre. Ter de tomar decisões que afetam não só a sua vida como a de toda a gente em seu redor, em função de algo que ele próprio não sabe muito bem como apareceu e como há de proceder, porque não tem um exemplo a seguir. Acho que todos nós nos sentimos assim, por vezes: com um pequeno poder que ninguém conhece e que dificilmente conseguimos explicar a outras pessoas.
Quanto a essa frase de que falas, e essa dualidade entre o moldar e o destruir, vejo isto em Miguel Torga, autor que me diz muito: muitas vezes, usa a frase mais simples, óbvia e sintética, e, de repente, tiras um universo dali. Torga faz isso com uma realidade muito específica, eu faço-o com um realismo mais fantasiado. Ou seja, estou a tentar trazer um realismo humano, e expandi-lo através da fantasia.
A construção e a destruição aqui tanto pode ser de sonhos, como de matérias, objetos que podemos identificar como reais, palpáveis, concretos, ao contrário da nossa vida que nem sempre o é: por vezes, é difusa. A fantasia permite-nos criar este paralelismo entre o que é realmente visível e se consegue colocar na mão, lamber e cheirar, e aquilo que é mais difuso. Na parte inicial da história, o "Gajo do Fogo" ainda está um pouco descrente: a Sofia vem visitá-lo, e ao encontrá-lo colocou em causa muitas das ideias que ele tinha, sendo ele quase um mito urbano, um eremita, que vive sozinho, não está com outras pessoas, não convive, não fala a não ser consigo e com a Natureza que tem junto de si. Nesta fase inicial, ele ainda está à procura do seu propósito: se é moldar, ou destruir."
No fundo, trata-se de "utilizar estas ferramentas do mistério, da fantasia, da comédia, do drama e demais subgéneros que temos ao nosso dispor para esticar o que a ficção é e o que a vida consegue ser. E irmos a sítios onde não vamos. Quando escrevo, sinto que há uma energia qualquer, vinda de não sei onde, a chegar até mim não sei como, mas que faz o trabalho por mim. Como se já não fosse eu a contar a história. Nesta, foi isso que aconteceu. Por ter gravado a curta-metragem na Figueira da Foz, e por estes lugares descritos existirem realmente, como a piscina abandonada no meio de uma escarpa com o oceano ao fundo, quando escrevi este conto em particular, foi como se estivesse lá, a ver tudo, e a história saiu."
Algo que li há algum tempo foi um realizador que o disse foi: 'sempre que fizeres um projeto, deixa alguma coisa que seja só para ti e que os outros não vão perceber.' Tenho mantido isso, e tenho tido a sorte e a liberdade de o fazer."
Transportando a narrativa para o exterior, há neste poder inelutável d' "O Gajo do Fogo" muito de real: a culpabilização de que por vezes somos alvo por algo que cometemos mas que está fora da nossa zona de controlo. Tal como escrito, culpar a Sofia seria como "culpar um pássaro por voar." Nas palavras de Diogo, "o "Gajo do Fogo" nunca julga a Sofia. Ela tem a mesma maldição que ele. Ele entende-a. É a única pessoa que a quis realmente ouvir. É aqui que não é tudo ficção, por dois motivos: primeiro, porque há muitas coisas nesta história que são literalmente retiradas da minha vida. Há pedaços de mim muito colados a esta personagem e a esta necessidade de querer ser para os outros, principalmente para os mais novos, aquilo que eu não tive muito presente enquanto jovem. Ser aquele exemplo que consegue ajudar, de alguma forma; servir, nalguma coisa. Por isso é que, quando a Sofia vai embora, ele fica a remoer: “porque é que eu não te disse isto!?; porque é que não me ouviste mais!? E vai falando com ela à medida que vai saindo da escarpa. Além disso, não é ficção porque…olhemos para o que está a passar na televisão."
Vou precisar de mais tabaco faz parte de um "ciclo de histórias, todas dentro do mesmo universo, com um determinado nível de associação de uns aos outros, e todos feitos dentro do mesmo “template”: sob pressão e com pouco tempo para rever. Começou em 2018, no Short Week, projeto no qual desafiei miúdos de secundárias a fazer curtas-metragens numa semana, desde a ideia à escrita e apresentação pública de um resultado final, gravado e editado. Para provar aos miúdos que era possível fazê-lo, e fazer muito com pouco, fiz uma curta-metragem numa semana, com Ana Monteiro, chamada A Internet matou o Chester Bennington. Algum tempo depois, sentei-me com Mauro Hermínio no café do Teatro Dona Maria II, em Lisboa, e chegámos a um esqueleto que depois montei com a Sofia. Surgiu o filme “A Sofia e o Gajo do Fogo”, que é o que se passa imediatamente antes de Vou Precisar de Mais Tabaco. Entretanto, cá em baixo, também numa semana foi gravada uma nova curta-metragem, na Mina de Sal Gema, em Loulé, com o apoio do Loulé Film Office e do Lama Teatro, que está agora em pós-produção e cujo argumento foi transformado em prosa e publicado na Antologia de Textos Originais, editada pela Edições Colibri, durante a pandemia.
Tenho outro texto ainda que é um eventual spinoff de Vou Precisar de Mais Tabaco, e é a contar estas histórias de uma forma transdisciplinar, de várias maneiras diferentes. Já pensei em fazer uma continuidade em formato podcast, até porque a leitura que fizemos destes textos d 'O Eco dos Pássaros foi muito bonita e achei que podia ser uma valência interessante. A transdisciplinaridade é algo que me interessa: acho estimulante podermos conciliar vários formatos - ter uma cara para dar aos personagens, mas, ao mesmo tempo, poder ir ao livro e saber o que se passa mais detalhadamente debaixo daquela pele."
Carlos Norton: "cada um estava enclausurado à sua maneira, mas teve um momento de libertação"
Quando foi lançado o desafio d' O Eco dos Pássaros, inscrevi-me para ler os textos dos outros. Não estava à espera de participar. Mas entretanto porque conhecia o Luís, quando viu que me inscrevi, acabou por me convencer a participar com um texto, porque sabia que eu, volta e meia, escrevia alguns.
As sessões online foram "momentos curiosos, porque cada um de nós estava em puro isolamento. Apesar de eu já viver meio isolado na Serra de Monchique, e passar dias, por vezes semanas sem ver ninguém, nessas reuniões pelo Zoom foi possível ver os rostos uns dos outros e perceber que cada um estava enclausurado à sua maneira, mas teve um momento de libertação, partilha e comunidade. Esse momento foi colocado em primeiro lugar através da escrita. Acho que foi isso que aconteceu a cada um dos autores: através da caneta saiu um bocadinho de casa, da jaula em que estava encarcerado. Acho que foram mágicos, alguns dos momentos que tivemos."
Na obra, são Ecos de Carlos o conto A Porta e o poema Vazio. Questionado sobre géneros e moldes em que se tende a tecer a sua escrita, Carlos esclarece: “desde que me lembro, ando sempre com um bloco e uma caneta no bolso. Aliás, se há algo que me faz voltar a casa, é esquecer-me disso. Se for os óculos, a carteira, não interessa. Normalmente, escrevo de mim para mim – não mais que isso. Na verdade, a primeira vez que escrevi um pouco mais “a sério” foi por desafio de Luís Ene, belíssimo autor de contos, romances e micronarrativas. O Luís inseriu-me no mundo das micronarrativas, e talvez tenha sido o primeiro género que comecei a escrever e me fez pensar que os outros podiam também ler aquilo que escrevo. Acima de tudo, o que escrevo gira em torno das áreas do romance, da ficção e do conto. A poesia, neste caso, foi um mero acidente."
Entrando no conto A Porta, é com cores que surgem os sonhos do personagem. Esta relação cromática "surgiu quando estava a escrever. Há apenas um personagem na história, e quando o estava a idealizar, surgiu este conceito que explorei e acabou por integrar a parte central do conto. Acaba por ser uma analogia, porque, normalmente, exploramos cinco sentidos, mas quando estamos fechados exploramos menos. Neste caso, os sentidos foram-nos privados e as cores são, na verdade, sentimentos, e nada mais que isso. Não há texturas nem formas: há simplesmente sentimentos. É isso que sentimos quando estamos fechados: não vemos o que se passa lá fora; o que nos chega são mensagens auditivas e visuais por via da televisão, e pouco mais."
A relação entre o personagem e a Porta é feita de tensões antagónicas: há um espanto inicial perante uma porta que, por estar num lugar inusitado e ilógico, instiga o personagem a destruí-la. Depois, a tentar reconstruí-la, e finalmente a contemplá-la. Será este processo uma metáfora para alguma coisa?
"É uma metáfora para o absurdo. O conto começa com uma situação absurda e acaba com uma ainda mais absurda, passando por outras igualmente absurdas. Toda a situação fora do conto, que vivemos na altura em que foi escrito, foi de absurdo. Através dos manuais de História, soubemos da Peste Negra e da Gripe Espanhola, mas como coisas muito remotas no imaginário coletivo. Temos uns relatos de mais velhos que ainda viveram a Gripe, mas há a sensação de ser algo longínquo. De repente, estamos confinados e a viver uma pandemia que só aparecia na mitologia e nos livros de História - coisa mais absurda que nos poderia acontecer enquanto seres humanos e sociedade. Daí que o texto comece com uma situação completamente absurda – uma porta que não dá acesso a nada, e termine com outra ainda mais – o personagem a querer reconstruir a porta que destruiu. Tudo isto tem que ver com a libertação: quando estamos num espaço fechado, queremos sair. Algo explorado no texto é que essa porta tanto serve para sair como para entrar. Esta dualidade entre o que sai e o que entra; o que desejamos e de que é que temos receio. Por um lado, sentimos segurança quando estamos dentro; por outro, temos o sonho de estar fora. A parte mais bonita é sempre a fantasia. Enquanto não sabemos o que é, há sempre espaço para a imaginação. Quando a Ciência desvenda o que é, torna-se um mero facto e perde essa magia."
Além de autor do conto A Porta e do poema Vazio, Carlos Norton foi revisor de Eco dos Pássaros.
Cláudia Tomé Silva: "o facto de estar em contacto com outros autores foi a grande mais-valia. (...) Acabou por ser um empurrão para a publicação do meu livro"
"Dadas as circunstâncias em que estávamos, foi uma iniciativa muito bem-vinda. Foi uma lufada de ar fresco importante, um balão de oxigénio", diz-nos Cláudia. Além disso, "o facto de estar em contacto com outros autores foi a grande mais valia." Na ausência desta iniciativa, Cláudia “nunca deixaria de escrever, porque sempre foi independente de outro tipo de iniciativas. No entanto, "acabou por ser um empurrão para a publicação do meu livro, porque conheci o Luís e a Editora Epopeia Books. Publicar não era uma coisa muito importante para mim, mas a pessoa que escreveu o prefácio vinha nos últimos tempos a incentivar-me a fazê-lo. Então, foi um conjugar de várias coisas, ao mesmo tempo, que foram surgindo no caminho, num timing perfeito. Quase como um acaso.”
Pelas mãos de Cláudia, estão no Eco os poemas Sonhei com um ataque nuclear, Desejar violentamente a paz, Uma praia desconhecida, "Propósito" e "Verdade", E agora? e Podes ser tudo - sendo este aquele que Cláudia imagina ser-lhe talvez o mais especial.
Adentrando pela poesia de Cláudia, no Poema E Agora fala-se sobre descobrir um enigma. Dá que pensar: há mistérios que tendo a perpetuar, descobertas que procuro adiar para não perder o encanto. Partilho com Cláudia esta confidência e, como ricochete, Cláudia partilha connosco: "o sentimento que despertou esse poema tem a ver com isso. Estávamos no fim de 2019 e no fechar de um ciclo muito importante para mim. Em que descobri um enigma, talvez o maior. Realmente, depois disso há aquele balanço que se faz: “e agora? Como vai ser, a partir daqui?" Há uma sensação estranhíssima, quase de anticlímax, quando permanecemos muito tempo num padrão e depois conseguimos libertarmo-nos dele; resolvê-lo. É um momento muito poderoso: simultaneamente libertador, um momento muito poderoso, mas, ao mesmo tempo, parece que ficamos sem chão porque tinhas como objetivo de vida resolver aquilo. E ficas….e agora? O que é que vai dar sentido a tudo isto? Fica essa sensação de espanto. E logo a seguir veio uma pandemia…"
Já no poema Desejar violentamente a paz, houve algo que me aludiu a “Liberdade”, poema de Fernando Pessoa em que se diz “Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/Ter um livro para ler/ E não fazer!” Parece gradual a forma como hoje alegamos que não temos tempo. Reflete Cláudia: "para mim, essa é uma falsa questão. Só não arranjamos tempo se não quisermos. Sou mulher, mãe, trabalhadora e papéis que nos impõem na sociedade atual, e muitas vezes vejo amigas e familiares referirem que não têm tempo. Só não tens tempo se o teu bem-estar não for realmente importante para ti. Para tudo o que nos é prioritário, temos tempo. Se temos tempo para comer, por que não para o resto?"
Por que esconjuramos o tempo livre? Por que é que o tempo livre não é visto como uma necessidade básica?, pergunto. "É por isso que vemos atualmente mulheres estoiradas e em bournout - uma situação que a pandemia veio agravar; tornar mais visível. Porque, à custa de todos os papéis que nos impõem na sociedade atual, não tiram 10 minutos por dia para ler umas páginas de um livro, dar uma caminhada, respirar ar puro. Eu aprendi que preciso desse tempo, e não abdico dele nunca."
Quanto ao livro físico, "é certamente emocionante ter nas mãos uma coisa que nos faz lembrar o período que passámos e as partilhas que fizemos. É interessantíssimo ver uma coisa que está na nossa cabeça, que parte de ideias nossas, palavras nossas, a ganhar forma e a resultar num livro; num objeto no mundo, que fica para a posteridade sobre nós. O Eco dos Pássaros acaba por ter a particularidade de ter partido de um grupo de pessoas que tinham algo em comum, o que é muito bonito."
Cláudia Tomé Silva é autora da obra Emoções Bárbaras, editada pela Epopeia Books em 2021.
Sandra Ramos: "Graças ao Eco, escrevi coisas que talvez noutra altura da minha vida não teria escrito"
De Sandra, ecoam os poemas Espero que vá a tempo..., Falemos de amor e Café de "escolateira".
"Quando o Luís falou comigo, disse logo que aceitava o desafio, porque foi numa altura muito complicada para todos nós, em que estávamos trancados em casa. Eu estava sozinha com duas crianças, e esta iniciativa, e os encontros que resultaram dela, acabaram por ser um escape: permitiram falar com outras pessoas, trocar ideias e experiências sobre o que era estar preso em casa, sem poder ir a lado algum, coisa que nunca nos tinha acontecido." Além disso, diz-nos Sandra, "conheci imensas pessoas que nunca tinha visto, escritores com uma forma de escrita e uma visão do que é a Escrita completamente diferentes das minhas. Graças ao Eco, escrevi coisas que talvez noutra altura da minha vida não teria escrito. Foi uma experiência completamente diferente. O facto de me ver sozinha entre quatro paredes com os miúdos levou-me a escrever algumas memórias que tinha da minha infância, e que saíram cá para fora. Como é exemplo O Café de "escolateira", que me levou aos tempos de infância em que o meu bisavô me fazia aquelas migas maravilhosas, com açúcar por cima, e o café de "escolateira". Levou-me a recordar esses tempos e a pensar que, nessa altura, se tivéssemos tido uma pandemia como agora, teria sido muito mais complicado - porque não tínhamos tecnologias. Sentir-nos-íamos ainda mais isolados."
Apesar de escrever todos os dias, "é claro que, naquela altura, o que escrevia tinha um sentimento diferente: o sentimento de não poder sair de casa, de estar “proibido”. Foi um tempo em que pensamos a vida e os afetos de uma outra forma."
Quanto ao livro físico, "fiquei maravilhada quando o tive nas mãos! Juntos, conseguimos criar um livro que ficou espetacular. Reli os meus textos e percebi quão complicados foram aqueles tempos, porque, apesar de ainda estarmos em pandemia, já não estamos presos. A nossa liberdade tem muito valor."
Sandra Ramos editou já duas obras de poesia pela Epopeia Books: Ilusão, em 2018, e Transparências, no final de 2021.